Realidades incômodas da habitação social na América Latina

Concluindo a série de artigos sobre o estudo da habitação social na América Latina, Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy e Ernesto Philibert-Petit apresentam uma reflexão sobre os altos preços da terra, grandes esquemas e desestabilização nacional. Confira, a seguir.

Habitação Social na América Latina: Realidades desconfortáveis

Ascensão dos preços da terra, corrupção, e desestabilização nacional

Nós gostaríamos de anteceder alguns dos problemas que poderiam surgir em um sistema imperfeito (como o ambiente da área imobiliária) com o objetivo de analisar a dura realidade do mercado. A decisão de destruir, de reforçar ou de apenas ignorar as favelas é do governo. Nós encaramos decisões desconfortáveis, que afetam as vidas de muitas pessoas, já em desesperadas situações. Não há uma solução simples, nem método universal que possa ser aplicado em todos os casos. O máximo que nós podemos sugerir é uma abordagem cautelosa, sem preconceito ideológico que beneficiará a população como um todo. Com freqüência, significativos, embora anônimos assentamentos tem sido destruídos em nome do desenho “racional”, que é nada mais do que uma ferramenta para manter o status quo. 

As ocupações requerem proximidade com a cidade, que é o local para onde as populações se mudam, em primeiro lugar. A proximidade é essencial para eles, muito mais do que para as móveis classes médias. Presentear os pobres com bem-construídas casas longe do centro da cidade não é presente valioso. Transferir os pobres para as habitações sociais construídas pelo governo fora da cidade pode empurrá-los ainda mais profundamente na desvalia, pois eles terão que gastar uma maior porção dos seus ganhos em transporte. 

Nossa recomendação para estabelecer a propriedade contribui para desfazer as soluções visadas, pois as casas bem-construídas são freqüentemente re-vendidas para moradores de classe média, enquanto os pobres retornam para os assentamentos irregulares (tanto para os originais, como constroem outros). Eles preferem usar o lucro da venda das suas casas financiadas pelo governo. Na economia de aluguel, um sistema de sub-locação substitui os residentes de classe média pelos mais pobres. 

Logo que uma peça imobiliária é registrada legalmente, o título transferível da terra se torna uma mercadoria negociável e entra no mercado livre (que pode ser um sub-mercado ilegal). Mesmo se um lote é localizado no meio de uma favela, ou em um não muito desejável projeto de habitação social, o seu preço pode subir. As oportunidades para o ganho orientam a consolidação dessas parcelas de terra para poucas mãos, não as dos residentes originais. Isto, na verdade, ocorreu em muitos países ao redor do mundo, levando a um corrupto pós-mercado imobiliário das favelas. Ironicamente, o acréscimo de infra-estrutura na favela aumenta seu valor, o que pode expulsar seus ocupantes originais. Em antecipação a este processo, a especulação pode correr amplamente na terra não construída.

Um sistema ligando oficiais corruptos a organizações criminosas permeia o processo encontrando maneiras de lucrar tanto das favelas como da habitação social. Apesar da aparentemente insolúvel natureza sócio-legal do problema, nós acreditamos que nosso método realmente auxilia no longo termo. Primeiramente, ao estabelecer uma apropriação mais amarrada do tecido urbano (tanto em termos sociais quanto emocionais) são reduzidas as oportunidades para a exploração, evitando-a. Segundo, muito dos centros de exploração que oferecem serviços que o governo se recusa a prover para os moradores das favelas, é simplesmente suprido pela demanda, embora a preços exorbitantes.

Uma preocupação muito diferente vem com a nossa recomendação de engajamento em organizações não governamentais (ONGs). Enquanto elas podem ser uma muito melhor opção do que a inflexível burocracia governamental, nós enfrentamos um problema com graves conseqüências. As maiores ONGs freqüentemente promovem “desenvolvimento” tecnológico na forma de grandes projetos como eletrificação, infra-estrutura e construção. Eles vêm o quadro em termos de larga escala, e gostariam de ver os maiores contratos nas mãos das companhias estrangeiras que possuem a experiência comprovada de desenvolverem projetos complexos destes tipos. O problema é que muitos países não podem pagar por intervenções em larga escala. 

Apesar desta realidade, os governos com freqüência são seduzidos a entrar nestes contratos, que em última instância, eles não podem pagar. Um país em desenvolvimento conta com suas reservas naturais para pagar a conta para uma rápida modernização. No entanto, as flutuações econômicas e os eventos inesperados são usualmente suficientes para balançar a fragilidade destes acordos. O resultado é que o país fica afundado na dívida. Ao tornar-se um país devedor, a nação pode ser estabilizada apenas com a ajuda do BID ou do Banco Mundial. A reestruturação via os Programas de Ajustamento Estruturais (SAPs), impõem condições econômicas muito duras, que pioram as vidas dos setores mais pobres da sociedade. Não apenas o país perde parte de sua soberania como, deste ponto em diante, fica em posição de não poder ajudar seus pobres de nenhuma forma.

A lição a ser aprendida a partir disto — uma lição que muitos países infelizmente falharam em aprender — é a necessidade de trabalhar na pequena escala. Projetos novos, amplos e caros, são factíveis para as nações ricas, mas muito arriscados para as nações em desenvolvimento. (Projetos em larga escala são, na maior parte, baseados em processos insustentáveis que desperdiçam grandes quantidades de energia e de recursos). A habitação social deveria crescer de-baixo-para-cima, aplicando soluções locais para projetos de pequena escala. Se estas soluções funcionarem, elas poderão ser aplicadas indefinidamente.

Há muitas ONGs independentes e que podem auxiliar, e especialistas estrangeiros que oferecem seu conhecimento e experiência graciosamente. É melhor apoiar-se tanto quanto possível nos recursos, no know-how e no capital financeiro local. Uma solução de longo prazo, baseada na evolução adaptativa dos padrões e da construção da habitação é mais sustentável do que a tecnologia do “faça rápido”. 

Os arquitetos contribuem para tornar os projetos existentes alienados

Um número de projetos construídos na América Latina resolveu uma miríade de problemas sobre como lidar com a burocracia, concordando com os fatores práticos e com a estrutura política existente. Grupos envolveram construção privada com organizações não-governamentais e o governo local para construir e financiar habitação social. No entanto, ainda há uma grande distância entre técnicas para implementação e como o produto final realmente é. Como foi notado anteriormente, a evidência científica sugere que isto não é uma questão de “gosto pessoal”, mas que há uma ampla área de consenso na avaliação humana, enraizada em processos universais de percepção e da biologia humana. Estas áreas de consenso podem ser estabelecidas através de “metodologias de consenso” do tipo das que nós usamos rotineiramente nos nossos processos de desenho colaborativo.

Neste ponto nós estamos menos entusiásticos sobre o que tem sido alcançado na América Latina. Apesar de todas as melhores intenções e da enorme quantidade de esforço investido, nós vemos muitos projetos que, em uma ampla gama de avaliações, são entendidos como tendo um caráter impessoal e industrial. Claro está que nem todos eles possuem o sentimento “mortal” do totalitarismo das habitações dos blocos de apartamento, mas a ambiência do espaço construído varia desde o horrível para o neutro. Em nosso julgamento, a forma e o layout falham em se conectar emocionalmente com os usuários. É interessante pesquisar as razões pelas quais estas soluções não são levadas através de todos os passos do desenho adaptativo. 

Nossa explicação é a seguinte: aqueles projetos são dirigidos por arquitetos, que ainda carregam suas bagagens intelectuais de tipologia e desenho industrial e relatividade dos gostos pessoais, mesmo quando eles tentam auxiliar as pessoas de maneira pessoal. A linguagem do arquiteto é influenciada pela sua ideologia de desenho, e isto não é universal. Muito poucos arquitetos escaparam da estética modernista que estabeleceu uma parte pivotal em sua formação (uma tradição nas escolas de arquitetura, estabelecida há muitas décadas). 

É muito difícil escapar destas imagens arquitetônicas entranhadas — para quebrar as tipologias fundamentalistas de cubos, janelas horizontais, blocos modulares, etc. — e a lógica do funcionalismo abstrato que freqüentemente serve como uma justificativa ideológica para posturas de auto-engrandecimento estético (Alexander, 2001-2005; Salingaros, 2006). Especialmente na América Latina, as tipologias modernistas arquitetônicas são adotadas como parte do estilo arquitetural nacional, popularmente pensado, de maneira errada, como ligado a crenças políticas progressistas. 

Deixar algumas de nossas críticas explícitas auxilia o leitor a saber do que nós estamos falando. Nós encontramos prédios com escala humana modesta (o que é bom), mas eles estão arranjados numa rígida malha retangular que não tem outro propósito do que o de expressar a “claridade da concepção”. O plano aparece perfeitamente regular do alto (sendo concebido para essa simetria que não se percebe) e expressa modulação ao invés de expressar variação. O arranjo matematicamente preciso é arbitrário, em relação à preocupação com a percepção e a circulação humanas, pois não contribui para a coerência urbana. 

Na escala dos prédios individuais, nós vemos as usuais obsessivamente paredes planas, sem superfície de articulação, retangularidade estrita, telhados planos, portas e janelas sem esquadrias, janelas estreitas, casas levantadas em pilotis, pátios posteriores sem sentido, sem curvas onde elas reforçariam a estrutura tectônica e paredes curvas colocadas por efeitos estéticos, espaços urbanos com tamanhos exagerados ou fragmentados, etc.

Estas são as características identificadoras da tipologia modernista dos anos 1920. Uma afirmação reforçada que está por trás da imposição deste vocabulário formal para a casa das pessoas é que uma pessoa comum, sem treinamento, é incapaz de criar forma e espaço, e somente um arquiteto (agindo como “especialista”) é capaz de fazê-lo. Isso tem a ver com a arrogância abertamente expressa pelos arquitetos modernistas que mostraram seu desdém pelo tecido urbano orgânico.

Versão anterior deste artigo foi apresentada por NAS como uma palestra no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006. Publicado em URBE: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Vol. 3 No. 2 (Julho/Dezembro 2011), páginas 293-308.

Tradução para Português: Lívia Salomão Piccinini.

Bibliografia

  • Christopher Alexander (2001-2005) The Nature of Order: Books One to Four (Center for Environmental Structure, Berkeley, California).
  • Nikos A. Salingaros (2006, 2014) A Theory of Architecture (Sustasis Press, Portland, Oregon). 

Sobre este autor
Cita: Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy & Ernesto Philibert-Petit. "Realidades incômodas da habitação social na América Latina" [Realidades incómodas de la vivienda social en Latinoamérica] 11 Jul 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/943131/realidades-incomodas-da-habitacao-social-na-america-latina> ISSN 0719-8906

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